Entrevista: Tim Burton (o deslocado)

Tim Burton acha que estranho mesmo é o mundo fora das telas. “Tudo está cada vez mais estranho, e não mais normal”, disse Burton, 51, à Folh...

Tim Burton acha que estranho mesmo é o mundo fora das telas. “Tudo está cada vez mais estranho, e não mais normal”, disse Burton, 51, à Folha em Londres, às vésperas do lançamento de seu novo filme, “Alice no País das Maravilhas”.

Inspirado na obra homônima de Lewis Carroll, um dos clássicos da literatura mundial, Burton criou uma versão da história em 3D repleta de distorções bizarras, figurinos sofisticados, cenários e personagens fantásticos. “Seus personagens foram tão explorados na cultura pop que encarei a obra como aberta a interpretações.”

O filme custou à Disney cerca de US$ 240 milhões (ou R$ 420 milhões). Estreou nos cinemas dos EUA e da Europa na última sexta-feira, e chega ao Brasil dia 23 de abril. “Alice” bateu o recorde histórico de bilheteria de estreia em final de semana para um filme que não é continuação, arrecadando cerca de US$ 210 milhões pelo mundo.

Em uma mesa-redonda com o diretor, da qual a Folha participou, Burton falou durante 15 minutos sobre o projeto “Alice”. Ao entrar na sala, agitado, sentou-se à mesa e disparou: “De quem é essa colher aqui?”, perguntou, segurando uma colher de chá deixada sobre a mesa por sua mulher, Helena Bonham Carter, que acabara de deixar a sala de entrevistas. Carter cercou-se de uma garrafa de água, uma xícara de chá e outra de café para conversar com os jornalistas. “Alguém precisava inventar uma bebida que misturasse chá, água e café. Só assim Helena não deixaria esse tipo de vestígio por aí”, brincou ele.

Passado o entreato, teve início a entrevista. Gesticulando sem parar, com seus cabelos para cima e olhos arregalados sob os óculos de lentes azuis, o diretor discorreu sobre o fascínio pelos personagens de Carroll.

O que lhe interessou na obra de Lewis Carroll?
Não foi tanto a história que me interessou, mas seus personagens. Para falar a verdade, não me lembro de ter lido “Alice no País das Maravilhas” na infância. Mesmo assim, eu conhecia os seus personagens por meio de músicas, imagens e ilustrações. Eles estão tão arraigados na nossa cultura, são tão poderosos como imagens, que não precisei ler Carroll para saber que aquilo era fascinante.

Por que personagens têm tanto impacto até hoje?
Aí é que está a beleza desta obra. Por mais que tenham sido feitas mil análises sobre “Alice no País das Maravilhas”, a história permanece um enigma e seu poder se mantém ao longo dos anos. Entrar em contato com essa história é como quebrar o “Código Da Vinci”. Eu amo isso! Carroll fez algo que você não consegue penetrar realmente, que não fala ao raciocínio lógico, mas que dialoga com algo profundo em todos nós, algo subconsciente. Para mim, esse é o tipo de criação mais puro e fascinante que existe.

A fronteira entre sonho e realidade, muito forte em “Alice”, é o território preferencial de seus filmes. Por quê?
Porque o mundo está ficando mais estranho, e não mais normal. No entanto, as pessoas continuam se esforçando em separar realidade de fantasia, quando essa divisão está cada vez mais embaralhada por conta da internet, da televisão etc. Para mim, fantasia sempre foi uma forma de explorar a realidade. Essa é a razão por que gostei tanto de fazer “Alice”. Nela, a vida interior, os sonhos e as imagens bizarras que uma imaginação pode produzir são, no fim das contas, reais e se transformam em ferramentas importantes para lidar com questões concretas.

Houve algum tipo de limitação nas mudanças feitas no enredo original de Carroll?
Existem mais de 20 versões de Alice que, a meu ver, sofrem do mesmo problema: tentam ser muito literais. É por isso que nunca me conectei com nenhuma delas. Aquilo de que gostei do roteiro de Linda [Woolverton, roteirista] foi o fato de ela ter pego o universo de Alice e o ter colocado num contexto um pouquinho diferente, criando uma Alice mais velha, com 19 anos. O meu objetivo foi tentar da melhor maneira possível ser verdadeiro com o legado e o espírito dos personagens de Carroll, e não com a história em si. Segui meus instintos e minhas emoções sem medo. E, para mim, essa é a mensagem de “Alice”: continuar a ver as coisas de formas novas, diferentes e estranhas, algo saudável e artístico ao mesmo tempo.

Seus filmes sempre trazem personagens deslocados, que parecem não se encaixar no contexto em que vivem. Alice também é uma deslocada?
Certamente! Ela não se encaixa no mundo nem na idade que tem. Está naquela fase esquisita em que não se sente confortável na própria pele. Há uma certa tristeza naquele personagem, e me identifico muito com ela nesse sentido. Acho que de tempos em tempos me sinto esquisito, desconfortável. Isso se torna mais forte em certas fases da vida. Do início da adolescência aos meus 20 e poucos anos foi um período muito complicado e difícil porque não me identificava com nada nem ninguém. É uma sensação que não abandona você nunca mais. Fica lá em algum lugar por mais que você esteja feliz e realizado. Toda vez que completo uma idade redonda, 30, 40, 50 anos, também enfrento esse desconforto por me sentir vulnerável, em transição.

Para fazer o filme, você já declarou ter se inspirado em desenhos que Arthur Rackman fez para a história de Carroll. O que há de especial neles?
Para começar, hoje eu vivo na casa que era o antigo estúdio de Rackman. É um carma muito bizarro! Ele fez ilustrações de Alice e do Cavaleiro Sem-Cabeça, e hoje moro na casa dele! É incrível! Conheci seu trabalho ainda pequeno, quando vi algumas ilustrações que acompanhavam um conto de Edgar Allan Poe e achei que eram imagens de grande impacto. Por isso sabia de suas ilustrações para um livro de Carroll e as usei como referência.

Seu primeiro emprego foi na Disney. Como foi trabalhar novamente lá?
Tenho uma relação engraçada com a Disney. Eles já me convidaram para projetos e depois me mostraram o caminho da porta de saída umas cinco vezes (risos). É uma relação de amor e ódio. Eles me adoram e chamam de volta, depois ficam com raiva de mim e me chutam pra fora. Eu tenho certeza de que isso vai continuar. No caso de Alice, eu disse que queria fazer esse material, sem ser muito sombrio ou fazer nada muito maluco. O material é esquisito o suficiente! É tão subversivo que, se fosse feito hoje em dia, provavelmente seria banido!

E é literatura infantil!
Pois é! Se fosse produzido nos dias de hoje, jamais seria chamado de literatura infantil. Seria, provavelmente, proibido para crianças. E talvez para adultos também!

Você já foi visto como um cineasta underground, mas agora está fazendo um filme para a Disney. Qual é a diferença?
Eu converso com muita gente que faz filme independente e percebo que os problemas são sempre os mesmos: você precisa da grana de alguém, seja de um estúdio ou de algum ricaço maluco, o que pode ser ainda mais complicado. A natureza do cinema é essa. Eu entendo essa natureza e aprendi a aceitá-la. Hoje consigo fazer filmes grandes ou de orçamento pequeno.

Esse é o oitavo filme que você faz com Johnny Depp. Que tipo de alquimia existe entre vocês?
Nós nunca pensamos nisso, e talvez seja essa a mágica. Nós vivemos o presente, não pensamos no que já fizemos nem no que vamos fazer no futuro. Além disso, temos um gosto muito parecido, e isso ficou muito claro pra mim em “Edward Mãos de Tesoura”. Temos um atalho na comunicação que torna tudo mais fácil e divertido.

Como foi fazer um filme em 3D? Este é o futuro do cinema?
Eu não sei se teria feito esse filme se não fosse 3D. A proposta me pareceu uma mistura de mídias interessante. E isso me deixou muito animado. O 3D é mais uma ferramenta. Algo que tem potencial de adicionar mais uma camada extra de sensações ao cinema. Existe a música, a cor, o movimento... e o 3D. Mas essa tecnologia não vai ser salvadora de nada nem a razão de ser do cinema. Pode acreditar que nos próximos meses será lançada uma porção de filmes 3D bem porcarias porque muita gente vai achar que basta ser 3D para ser bom. É a nova onda.

Qual será seu próximo projeto?
Vou refilmar “Frankenweenie”, o segundo filme da minha carreira, em 3D.

Texto: Fernanda Mena

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