Divagações: Noah

Se há uma coisa que aprendi nessa minha vida é que discutir religião é sempre um exercício complicadíssimo – misture cinema nesse meio qu...

Se há uma coisa que aprendi nessa minha vida é que discutir religião é sempre um exercício complicadíssimo – misture cinema nesse meio que você estará com uma receita quase certa para o desastre. Nada contra a crença de ninguém, mas, aparentemente, a fé faz muita gente torcer o nariz para certas coisas sem sequer fazer uma reflexão sobre o assunto. Digo isso, pois, quando vi Noah, a internet ainda não estava inundada (com o perdão do trocadilho) de críticas à obra. Porém, foi só o filme chegar ao grande público que começaram a pipocar dezenas de insultos ao trabalho de Darren Aronofsky, apenas porque ele ousou dar sua visão pessoal sobre uma história de três mil anos atrás.

O cerne da história bíblica está presente. Noah (Russell Crowe) continua sendo o escolhido do criador (um termo mais ecumênico que ‘Deus’) para salvar os animais do grande dilúvio, mandado para exterminar a corrupta raça humana. Para tal, ele parte com sua esposa Naameh (Jennifer Connelly), sua filha adotiva Ila (Emma Watson) e seus filhos Ham (Logan Lerman) e Shem (Douglas Booth) para construir uma grande arca e cumprir a visão divina – nem que para isso ele tenha que entrar em conflito com o líder das tribos dos homens, Tubal-cain (Ray Winstone).

Contudo, essas similaridades são logo jogadas para segundo plano em prol de um trabalho mais autoral do diretor. Começando pelos personagens, já que a família de Noah, de meras notas de rodapé no texto das escrituras, passou a ter personagens relativamente relevantes, cada qual com suas motivações e opiniões sobre a demanda do protagonista. Aliás, ele mesmo deixa de ser o bastião da virtude pintado pela Bíblia e passa a assumir contornos bem mais humanos, falhando, sofrendo e questionando o seu papel em toda a missão que caiu sobre os seus ombros.

Visualmente, o filme também é bastante provocativo, misturando monstros de rocha, visões psicodélicas (em uma das melhores sequências do filme), evolução, mundos pós-apocalípticos e toda uma vibe Mad Max à mitologia hebraica. Não é preciso dizer que esses pontos são particularmente indigestos para aqueles religiosos que foram ao cinema buscando uma visão mais convencional da história. Mas é exatamente isso o que torna este um filme interessante, seu desprendimento às convenções e certezas repetidas por toda a história da civilização ocidental.

Justamente por Aronofsky ser ateu (o que por si só pode horrorizar os fundamentalistas) é que ele se torna isento para contar uma história interessante com um pano de fundo bíblico sem tentar doutrinar ninguém. Isso não significa agir com desrespeito ou menosprezar e distorcer grandes figuras religiosas, mas extrair daqueles mitos e lendas mensagens que são universalmente aceitas, independente de credo.

Não é de se surpreender que o Noah de Crowe seja uma figura angustiada e perturbada com o peso de sua própria jornada (e de certo modo de todo o destino na humanidade), que sofre e tira suas próprias conclusões do silêncio e das ações de um criador inalcançável. Assim, é muito simples acusá-lo de transformar o afável e sábio personagem da Bíblia em uma figura muitas vezes detestável e com uma moralidade questionável, o complicado é compreender que isso nem sempre é uma coisa ruim.

Polêmicas a parte, não acho que Noah seja exatamente uma obra-prima (nem sequer o melhor filme de Aronofsky), pois a obra tem diversos problemas de ritmo, sequências desnecessárias de ação e relega algumas questões muito interessantes sobre moralidade para o plano de fundo, dando a impressão que o resultado final foi nivelado para baixo de forma a atingir um número maior de expectadores. Ainda assim, o filme possui diversas mensagens interessantes e consegue trabalhar vários temas que, mesmo presentes no antigo testamento, são frequentemente ignorados pelas religiões modernas.

Ao final, Noah é muito menos um filme cristão do que poderia se pensar. Arrisco dizer até mesmo que suas licenças poéticas são capazes de desagradar àqueles mais familiarizados com a versão bíblica do mito. Pelo outro lado, se você está mais aberto às interpretações alegóricas e não liga para uma dose considerável de exagero, às vezes vale a pena dar uma conferida, nem que apenas para apreciar os ótimos visuais e algumas sequências onde o 3D é muito bem utilizado.


Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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