Divagações: Straight Outta Compton

Olhando em retrospecto, a década de 1980 talvez tenha sido uma das mais significativas culturalmente em séculos, deixando para trás a sua...

Olhando em retrospecto, a década de 1980 talvez tenha sido uma das mais significativas culturalmente em séculos, deixando para trás a sua colaboração em diversas transformações tecnológicas e políticas, desde a popularização da informática ao advento do estado neoliberal globalizado. Porém, ainda que palco de grandes mudanças, foi justamente o fim da década que deixou para trás a ingenuidade e o otimismo dos baby-boomers e nos forçou a finalmente encarar de frente o fato de que nem todos haviam sido igualmente privilegiados com a fartura e as promessas de desenvolvimento do pós-guerra.

Nem mesmo o Estados Unidos, berço do capitalismo moderno e grandes vencedor moral da Guerra Fria, estava a salvo dessas reflexões. Do aumento das periferias, da criminalidade e da truculência policial até a realização cada vez mais óbvia de que a sociedade americana ainda era fundamentalmente racista e classista, havia várias evidências que nos levavam a admitir que o sonho americano estava finalmente morto e enterrado. Mas quem disse que algo de muito poderoso e visceral não pode justamente nascer das suas cinzas?

Se propondo a contar a história do N.W.A, o grupo de rap que talvez melhor tenha captado as vozes das periferias americanas, Straight Outta Compton é uma cinebiografia que não tem medo de mostrar uma realidade nem sempre agradável. Assim, o filme orbita por figuras muitas vezes moralmente ambíguas e não necessariamente dignas de simpatia ao acompanhar importantes nomes da história do rap, como Ice Cube (interpretado por seu filho, O'Shea Jackson Jr.), Dr. Dre (Corey Hawkins), Eazy-E (Jason Mitchell), Dj Yella (Neil Brown Jr.) e MC Ren (Aldis Hodge). Eles são vistos desde suas origens humildes e muitas vezes criminosas nas ruas de Compton, na Califórnia, até o súbito estrelato e todos os problemas que inevitavelmente vem com ele, passando por brigas e separações.

Primeiramente, é preciso dizer que este é um filme corajoso, que dá a cara a tapa, não tendo medo de polemizar, cutucar feridas ou ser excessivamente explicito, tanto nos visuais quanto na própria linguagem – apesar de que, obviamente, um pouco do impacto se perde pela barreira linguística.  Este não é um filme para aqueles que se ofendem facilmente.

Ainda que não tente capitalizar completamente no lado sociológico do fenômeno do “gangsta rap” do final dos anos 1980 até a metade dos anos 1990, Straight Outta Compton consegue nos convencer da importância da música como ferramenta de revolta contra um sistema que nega dignidade e direitos básicos a um cidadão apenas por causa de sua cor e de sua origem. A violência (tanto real quanto simbólica) dos personagens é retratada aqui como uma reação a violência institucional, demonstrando que em certa medida estes artistas são obrigados justamente a canalizar através da música a persona de criminosos como forma de esconder suas próprias vulnerabilidades e escapar da sujeição a qual sempre estiveram submetidos em suas vidas.

E são estas motivações que vendem muito bem a ideia do filme. É através do pessimismo e da agressividade que conseguimos compor um retrato da vida destes rapazes e entender o motivo do seu sucesso justamente na sua crueza e na sua capacidade de vocalizar o sentimento de milhares de outros jovens negros que cresceram em ambientes similares. Não é à toa que Fuck Tha Police se tornou um hino contra o abuso das prerrogativas do estado e abasteceu uma dezena de revoltas civis na época, demonstrando muito bem o quão influente o N.W.A foi para a música e para a sociedade americana.

Apesar de se mostrar um comentário social particularmente interessante, Straight Outta Compton não é particularmente brilhante como obra cinematográfica se observado unicamente por aspectos técnicos. A dimensão subjetiva dos personagens é deixada um pouco de lado, a progressão narrativa se resume a um recorte linear de fatos históricos e a alguns personagens importantes são ignorados para dar mais espaço a história de Ice Cube e Dr. Dre, ambos produtores do filme e claramente beneficiados por esta posição. Sinceramente, nem mesmo as atuações são particularmente empolgantes ou memoráveis (com exceção de O'Shea Jackson Jr., que incorpora perfeitamente o pai – até o momento não sei se isso é exatamente um grande mérito).

Com boas intenções e um bocado de conteúdo, Straight Outta Compton é uma obra particularmente atraente para os fãs de rap ou para aqueles que já sentiam falta de bons filmes fundados em críticas sociais, com a clara vantagem de não precisar apelar para o didatismo ou justificar o comportamento de seus protagonistas. Ainda que não seja um filme perfeito, é certamente uma obra que inspira reflexões, mas que – justamente pelo seu subtexto político e pela sua capacidade de polarizar opiniões – pode não agradar a todos.

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