Divagações: I, Daniel Blake

Eu já tentei pedir Seguro Desemprego. Marquei um horário pela internet, reuni toda a papelada necessária, esperei por quase um mês e fui. ...

Eu já tentei pedir Seguro Desemprego. Marquei um horário pela internet, reuni toda a papelada necessária, esperei por quase um mês e fui. Chegando lá, faltava um carimbo no verso de um documento. Até eu conseguir o tal carimbo, lá se foram vários dias. Marquei um novo horário. No final das contas, minha história tem um final feliz porque comecei um trabalho novo exatamente no dia em que teria que reapresentar a papelada. Mas a verdade é que machucou não ter conseguido exercer um direito.

I, Daniel Blake é mais ou menos sobre isso, só que ele se passa na Inglaterra (um país do primeiro mundo!) e as circunstâncias pessoais são piores. Sei que isso não vende o filme muito bem, mas há algo de interessante em ver um filme sobre pessoas normais fazendo coisas normais. A produção se torna mais palpável e você consegue se identificar com todas as pessoas com maior facilidade, mesmo que elas apareçam por pouco tempo.

Daniel Blake (Dave Johns) é um carpinteiro viúvo e sem filhos que sofreu um ataque cardíaco e, agora, não pode trabalhar por ordens médicas. Ele está melhorando e, aparentemente, está tudo bem, mas deve fazer repousos regulares e diversos exames. O problema é que, para de receber o auxílio do governo durante os meses em que ficará em casa, ele precisa responder a um questionário gigantesco e, ao final, a ‘profissional de saúde’ responsável diz que ele deveria voltar ao trabalho. Não querendo contrariar a ordem médica, Daniel tenta um recurso e, ao mesmo tempo, apela para o Seguro Desemprego. Com isso, ele apenas se envolve em mais burocracia.

Enquanto acompanhamos essa jornada muito irritante – eles são ingleses, então, tendem a serem formais e educados, gerando um sentimento de frustração pela falta de uma forma melhor de extravasar –, também somos levados pelo dia a dia de Daniel. Além de falar com médicos, ex-colegas e funcionários da agência do governo (Stephen Clegg, Sharon Percy, Kate Rutter), ele interage principalmente com seu vizinho China (Kema Sikazwe), que está tentando fazer dinheiro com a venda de tênis comprados na China, e com uma moça que conhece em meio à burocracia, Katie (Hayley Squires). A história dela, aliás, passa e se misturar à dele. Com dois filhos para cuidar (Briana Shann e Dylan McKiernan), ela foi obrigada a sair de Londres em busca de moradia. Mas, como não conhece ninguém na nova cidade, tem dificuldades em conseguir emprego.

Depois de ler os dois parágrafos acima, suponho que você já tenha percebido, mas aviso mesmo assim: I, Daniel Blake faz as pessoas chorarem. As pequenas desgraças e desilusões cotidianas ganham outra dimensão quando passam para o outro lado da tela. Você sente que sabe para onde toda a história está caminhando, mas consegue se desapontar novamente com aquela situação a cada novo desenrolar.

Obviamente, essa história absolutamente comum – é bem provável que você conheça uma parecida – não funcionaria no cinema se ela não fosse bem executada. O que o diretor Ken Loach fez foi uma construção bastante delicada, onde nem mesmo alguns atores sabiam o caminho da história. Ele intercala momentos de irritação com outros de esperança, desgosto com nostalgia, desespero com acalento. Seus personagens são reais, enfrentam filas, dedicam-se uns aos outros e conseguem continuar em meio ao sofrimento. Viver não é fácil. E não porque há um grande vilão, mas porque a sociedade não deixa que seja. É o maldito sistema atacando novamente.

I, Daniel Blake, claro, é um filme que tem sua mensagem política. Ao usar um ponto de vista bastante humano, tendo como protagonista um senhor doente (encarnado por um ator conhecido localmente por seus papéis cômicos), torna-se difícil negar que há um problema nos programas sociais do Reino Unido. Mas há quem seja contra o simples fato desses programas existirem, pois eles oneram o governo e criam dilemas que deveriam ser encarados de outras formas. E também há quem chame Ken Loach de “o Michael Moore britânico”, relembrando de seus tempos como polemista.

O fato é que trazer um assunto à tona por meio de um filme é como gritar por atenção. Assim, com a consciência de que há uma agenda assumida pelo longa-metragem, a conclusão é que I, Daniel Blake merece ser visto, compreendido, interpretado, questionado, respondido e até mesmo negado. O que não pode acontecer é que o filme seja ignorado.

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