Divagações: Hacksaw Ridge

Como diretor de cinema, Mel Gibson não é um profissional que opta por filmes fáceis. Mas, considerando seus longas-metragens anteriores, ...

Como diretor de cinema, Mel Gibson não é um profissional que opta por filmes fáceis. Mas, considerando seus longas-metragens anteriores, Hacksaw Ridge pode até parecer um drama de guerra convencional – não se deixe enganar. Essa é mais uma produção difícil de assistir, mas ao mesmo tempo recompensadora.

Assim, como em todos os outros filmes de Gibson, Hacksaw Ridge tem um protagonista-herói bem definido e que não deixa muito espaço para os coadjuvantes. Desmond Doss (Andrew Garfield) é um jovem adventista, filho de um pai alcoólatra (Hugo Weaving) e de uma mãe que está se esforçando ao máximo para manter a família unida (Rachel Griffiths), inclusive com certo sucesso. Desmond, por sua vez, está fazendo seu melhor para flertar com uma enfermeira do hospital local (Teresa Palmer) e ela, aos poucos, vai caindo em seu charme. Ele também gostaria de ser médico, mas não teve condições de estudar.

Eis que a 2ª Guerra Mundial se torna inevitável e ele resolve se alistar. O campo de treinamento envolve muita lama, um sargento gritão (Vince Vaughn), um possível rival (Luke Bracey) e outros colegas das mais diversas origens e personalidades. Mas o dia a dia de Desmond é um pouco mais complicado do que o de seus companheiros, pois ele se recusa a sequer encostar em uma arma de fogo, o que traz muita desconfiança e gera inimizades. Eventualmente, ele é autorizado a treinar como médico e ir para o campo de batalha sem nem ao menos uma arma para defesa própria.

O que se segue é o que toma a maior parte de um filme de mais de duas horas de duração. É uma batalha sangrenta, barulhenta, demorada e com diversos quadros feitos para causar desconforto (não adianta fechar os olhos por um pedaço do filme). Se você estava em dúvida de que Mel Gibson estava no comando, as cenas dos soldados desorientados e desesperados não deixa muitas dúvidas. Ao mesmo tempo, o verdadeiro Desmond Doss recebeu sua medalha de honra pelo heroísmo em um campo de batalha – e o filme nunca escondeu que era essa a história que pretendia contar, afinal, seu título é justamente o nome do local da batalha: Hacksaw Ridge.

Na verdade, trata-se de um ato de heroísmo tão grande que fica difícil acreditar no personagem de Andrew Garfield enquanto ele corre entre corpos e destroços em busca de mais e mais feridos. Dizem que o ator, com uma fala mansa e um ar de ingenuidade, foi bastante fiel ao retratado, mas ele acaba gerando certo distanciamento do público. Afinal, o que ele faz na tela se parece mais uma teimosia muito corajosa e um tanto quanto inconsequente que, exatamente, com um comportamento normal de uma pessoa em uma situação de estresse extremo. Ao mesmo tempo, reza a lenda que certos fatos reais acabaram sendo cortados do filme justamente porque seria difícil fazer o público acreditar neles (como pular de uma maca para que outra pessoa fosse levada e ajudar um grande número de outros feridos enquanto espera o retorno de seu próprio resgate).

Obviamente, Hacksaw Ridge é uma contradição por si só. A história de um jovem religioso, que se recusava a encostar em armas, é contada da maneira mais sanguinolenta possível. A fé está presente em toda a produção, mas o público não é convidado a compartilhar da crença do personagem. Inclusive, quando os colegas de exército demonstram a necessidade de rezar, a fé parece estar depositada com mais força no protagonista que na religião em si, sem que ele – a princípio, uma pessoa bastante modesta – tente abertamente reverter essa percepção.

O mesmo se dá com a estética da produção, que parece se beneficiar da desgraça. A mutilação, o sangue, o desespero, o fogo, os tiros e as explosões são retratados da maneira mais bonita possível. Aos poucos, o efeito de choque se transforma em uma idealização do conflito. Enfrentar o que parece ser a morte certa é tido como morrer com dignidade, sem que as reais motivações da guerra (ou o mérito do inimigo, tão forte e resistente) sejam questionadas.

A propósito, o primeiro terço de Hacksaw Ridge e as cenas de batalha que o seguem não parecem fazer parte de uma mesma produção, tendo estilos e ritmos bem distintos. Talvez isso tenha sido proposital, feito para dar o devido destaque às sequências da guerra, mas o tom destoante dá um aspecto irregular e incômodo para a produção como um todo (e não me surpreende que muitas pessoas tenham desistido antes do fim da exibição).

Na posição de um típico filme de Mel Gibson, o longa-metragem é bonito visualmente e em sua mensagem, estando repleto de boas intenções. Tecnicamente, ele é perfeito, ainda que, narrativamente, haja espaço para muitas melhoras. Em um contexto amplo, Hacksaw Ridge é um filme de guerra com características bastante próprias e capaz de se destacar entre os demais por sua ousadia – não muito diferente do que acontece com seu protagonista –, mas está longe de ser um filme unânime.

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