Divagações: Bingo: O Rei das Manhãs

Apesar de ser conhecido lá fora desde a década de 1960, o palhaço Bozo veio a se tornar um ícone pop para a molecada brasileira lá nos an...

Apesar de ser conhecido lá fora desde a década de 1960, o palhaço Bozo veio a se tornar um ícone pop para a molecada brasileira lá nos anos 1980, quando o programa infantil do SBT (na época TVS) bateu de frente com a Globo pela dominância da grade matinal. Mas, como no Brasil as coisas raramente funcionam sem uma dose de polêmicas, o Programa do Bozo estava repleto de problemas, sobretudo envolvendo Arlindo Barreto. Talvez o mais conhecido dos intérpretes nacionais do palhaço, ele ficou famoso por seus problemas com drogas e pelos seus inúmeros casos com celebridades da época.

Bingo: O Rei das Manhãs é uma versão dessa história, mas com uma dose de licença poética.
Dirigido por Daniel Rezende – em sua estreia no comando de longas-metragens após se tornar um dos mais reconhecidos editores do cinema nacional –, o filme troca alguns nomes aqui e ali para evitar problemas judiciais, fazendo com que seja um pouco estranho quando alguém aparece com seu nome original em tela, como é o caso da dançarina Gretchen (Emanuelle Araújo), que namorou Barreto na vida real. Ainda assim, a produção consegue capturar de modo muito competente um momento raramente explorado da nossa cultura nacional, aquela cultura pop rasteira que, querendo ou não, marcou a infância de muita gente.

Em Bingo: O Rei das Manhãs, ao invés de Arlindo temos Augusto Mendes (Vladimir Brichta), um ator de pornochanchadas que, por conta do incentivo do filho Gabriel (Cauã Martins), tenta alavancar a carreira em uma produção um pouco mais ‘amigável’. Sua busca o leva às portas da TV Mundial, a maior emissora do país, mas entre ser figurante na novela das oito ou buscar o próprio estrelato, Augusto prefere muito mais a segunda opção. Isso o coloca (meio que acidentalmente) em contato com um novo programa produzido pela rival TVP, uma versão nacional do palhaço Bingo, sucesso nos Estados Unidos, que será comandado por Lucia (Leandra Leal). Ela é uma diretora linha dura e desaprova o jeito desbocado e irresponsável de Augusto – que, contra todas as chances, faz o programa decolar.

O que se segue é aquela velha história dos males do estrelato e de um pai que se afasta da família por conta das drogas e do sexo, indo do fundo do poço à redenção. Até aí, nenhuma novidade. O que transforma Bingo: O Rei das Manhãs em um filme verdadeiramente interessante é a maneira que isso é executado: desde o trabalho muito competente de Vladimir Brichta – que brilha como uma figura dúbia, mas ao mesmo tempo empática –, até a recriação caprichada da época. Afinal, a história se situa em um momento importante do imaginário popular brasileiro, que só poderia ter existido nas condições meio mambembes e meio megalomaníacas pelas quais nossa televisão passou. Desse modo, o cenário não é apenas um detalhe, mas um personagem ativo da trama, com a boa direção de arte fazendo isso tudo funcionar de modo coeso.

O filme é bem dirigido e bem montado, mas não trás nada de provocativo como alguns trabalhos anteriores da equipe. Possivelmente, a maior preocupação estava mesmo em contar a história que, mesmo mais livre por conta da abordagem, ainda era ancorada em fatos reais. Inclusive, o longa-metragem até tenta salpicar umas sequências mais lisérgicas aqui ou ali (infelizmente nada tão visual), mas, no geral, deixa a bola rolar para o seu elenco.

Ainda assim, tirando o protagonista, os demais personagens não são exatamente muito profundos e, às vezes, soam inteiramente como um elenco de apoio. Mas nada disso subtrai muito do resultado final. Afinal, Brichta realmente tem um papel mais denso, a ponto de lembrar um pouco o trabalho de Michael Keaton em Birdman (onde a máscara do herói dá lugar à maquiagem do palhaço na tênue linha onde o ator termina e o personagem começa).

Em um mar de comédias meio pastelão com os mesmos rostos, Bingo: O Rei das Manhãs é um sopro de ar fresco no cinema nacional, que a tempos não entregava um filme engraçado, porém com substância. Não que ele não tenha seus problemas, como uma mensagem um pouco esquisita ou um desfecho jogado, mas é legal ver um filme brasileiro – e que fala de coisas bem brasileiras –, sendo capaz de competir de igual para igual nos cinemas com produções bem maiores e mais ‘universais’.

Agora, resta apenas saber como será a recepção de uma geração mais nova, que cresceu em um contexto completamente diferente do mostrado no filme. Para mim não é claro se essa parcela significativa do público dos cinemas vai conseguir embarcar em uma ideia que é, decididamente, produto de uma nostalgia da equipe de produção.

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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