Divagações: We Need to Talk About Kevin

A transposição de uma obra literária para o cinema é sempre um desafio para os realizadores. A princípio, a história contada por um filme...

A transposição de uma obra literária para o cinema é sempre um desafio para os realizadores. A princípio, a história contada por um filme precisa acontecer através das imagens, mas apenas palavras são suficientes para um livro. Essa ampliação de sentidos (afinal, agora temos a audição e a visão não está ‘limitada’ à leitura) também simplifica a história e acaba entregando um material mais ‘mastigado’ e pronto para uma interpretação facilitada. Tudo se torna mais acessível e a visão dos realizadores é exposta de maneira clara.

Embora isso não seja aplicável a 100% dos casos, We Need to Talk About Kevin é um exemplo de filme que perdeu algumas dimensões durante sua adaptação. A obra original é bastante perturbadora e mexe com os sentimentos do leitor. Já o filme conta algo que aconteceu com pessoas distantes e simplifica os personagens, especialmente a protagonista, interpretada por Tilda Swinton.

Eva Khatchadourian (Tilda Swinton) é casada, mãe de dois filhos e empresária de sucesso. Essa vida aparentemente perfeita, no entanto, tem pequenos abalos devido ao estranho comportamento de seu filho mais velho, Kevin (Jasper Newell e Ezra Miller). Tudo vem abaixo justamente quando o rapaz, já na adolescência, promove um massacre dentro do ginásio de seu colégio, matando vários colegas. Eva, então, precisa lidar com a hostilidade de desconhecidos, enfrenta processos judiciais, perde seu dinheiro e sua família e passa a trabalhar em uma pequena e burocrática agência de viagens.

Com roteiro e direção de Lynne Ramsay, o filme é narrado de uma forma confusa, procurando retratar o estado mental de Eva. Lembranças vêm e vão, misturando o passado e o presente da personagem. No cinema, isso funciona muito melhor que a narrativa epistolar do livro e traz uma sensação agonizante, uma vez que o espectador descobre aos poucos a origem dos sofrimentos dessa mulher e percebe suas fragilidades com mais proximidade.

O leitor, no entanto, sentirá falta de dois elementos importantes. O primeiro é o ressentimento de Eva em relação aos Estados Unidos, um país ao qual ela não se julga pertencente e que critica com frequência. Suponho que, mesmo com a origem inglesa do filme, esse elemento diminuiria a simpatia de boa parte do público em relação à personagem.

Já o segundo ponto são as conversas dela com o filho detido. Esses momentos seriam a oportunidade para Ezra Miller brilhar e dariam uma nova ótica para a relação entre mãe e filho, mas aparecem muito raramente e focam mais em olhares tensos e silenciosos. Acredito que, aqui, a questão é a própria abordagem do filme, que preferiu dar destaque para a mãe sofredora em detrimento de maiores complexidades, que poderiam confundir o público –afinal, durante a leitura de quase 500 páginas há muito mais tempo para pensar e se envolver, enquanto o filme dura menos de duas horas.

No geral, We Need to Talk About Kevin cumpre bem sua proposta, trazendo um drama solitário e intrigante. Seguindo fielmente a proposta de vasculhar a mente da protagonista, os cenários apresentam uma casa tão vazia quanto ela. A sala tem um sofá confortável, mas uma grande área sem móveis, as prateleiras não possuem muitos objetos pessoais e os armários na cozinha dão a impressão de que eles não moram exatamente lá. Falta um toque humano, um envolvimento maior.

Ainda assim, o filme é muito dependente dos atores, pois até mesmo a falta de carinho precisa ser expressa. John C. Reilly, como Franklin, o marido de Eva, se deixa ser eclipsado pela atuação profunda de Tilda. Ela foi uma escolha perfeita para interpretar essa mulher que se sente incompreendida desde o nascimento do filho, demonstrando surpresa com as pequenas alegrias e engolindo com resignação as grandes ofensas. Em parte, a culpa talvez seja dela, como suas lembranças insistem em insinuar.

Reservando uma surpresa a cada novo corte, We Need to Talk About Kevin é um mergulho em outra consciência, uma viagem que pede por desprendimento e paciência. É, também, uma experiência diferente da que é proporcionada pelo livro de Lionel Shriver. Ainda bem. Mídias diferentes pedem perspectivas diferentes.

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